UM CICLO INTERROMPIDO, E RETOMADO

(ensaio sobre a obra Como interromper a eternidade? (Intervalos para a dúvida) presente na exposição Prémio Novos Artistas Fundação EDP, MAAT - Museu de Arte, Arquitectura e Técnologia, Lisboa, Portugal)




O projeto que AnaMary Bilbao desenvolveu assenta numa reflexão sobre o tempo, e toma como ponto de partida a circunstância particular de um momento da vida do escritor, teórico e socialista francês, de seu nome Louis-Auguste Blanqui (1805-1881). Esta figura histórica participou em várias tentativas revolucionárias, como a Revolução Francesa de Julho de 1830, e viveu parte da vida na prisão, onde escreveu diversas obras de caráter político e especulativo, entre as quais L’éternité par les astres: hypothèse astronomique, desenvolvida em 1871 no cárcere do Château du Taureau, nas encostas da Bretanha, durante os cerca de cento e cinquenta dias em que esteve preso. E foi esta circunstância específica da vida desta figura do século XIX que captou a atenção de Bilbao, ao resgatar uma temporalidade que se expande para lá da narrativa histórica que mede os dias, ou os meses, do cativeiro do autor, e que se estriba no paradoxo que é o seu percurso revolucionário e filosófico, mas simultaneamente estético e poético que a sua obra escrita revela.


No seu processo de trabalho, AnaMary Bilbao reúne materiais de fontes diversas, e de diferentes épocas, como a fotografia, o cinema, o filme em formato de 16 mm, registos literários e sonoros, tanto captados diretamente no local como transcritos posteriormente; e nesse processo concentra os meios necessários, manuais, técnicos e tecnológicos para construir as suas obras. A instalação Como interromper a eternidade? (Intervalos para a dúvida) é um projeto expositivo que deve ser compreendido na sua totalidade, e que nesta exposição ultrapassa a sua metodologia processual porque conjuga fotografia, desenho, imagem em movimento e som.

 
A leitura de Blanqui pode ser assumida como fonte da pesquisa para a artista que abre um novo campo de possibilidades no seu trabalho. Por isso, a viagem até ao cárcere, em Morlaix (França), foi decisiva para compreender a importância da memória do lugar, da sonoridade que invade esse espaço e do contexto paisagístico que o envolve. Os registos fotográficos que Bilbao trabalhou são também ancorados em objetos dos primórdios da história da fotografia. Trata-se, no original, de imagens sensibilizadas sobre vidro, do século XIX, que representam paisagens que a artista ampliou para o grande formato, e que, do meu ponto de vista, resgatam os grandes planos cinematográficos, ou mesmo um género da pintura dedicada à paisagem. O que faz diferir estas imagens do registo de um arquivo documental é uma dupla via de interpretação do tempo e do espaço, entre a paisagem reconhecível e a paisagem abstrata, que Bilbao explora. Na primeira, duas imagens, suspensas desenham sob um negrume oxidado o recorte das encostas e o mar denso e forte, e foram impressas por um processo de transferência sem manipulação. As outras imagens são como painéis abstratos, porventura cósmicos, compostos por imagens indefiníveis, como a dimensão finita dos pontos, que Blanqui atribuía à constante e eterna revolução da estrutura do Universo. Estas paisagens, como visões, são trabalhadas de um modo vernacular, com instrumentos riscadores e de desgaste material feitos pela própria artista, o que introduz a manualidade, característica do seu trabalho, como instrumento de interpretação que suspende o tempo e o espaço, libertando-o. Os negativos raspados, como apagamentos, obnubilam as imagens originais degradadas pelo tempo, e conferem-lhes uma outra reconfiguração visual. Desse lugar, só temos uma sonoridade marcada pelo movimento cíclico (em loop) acionado por um dispositivo analógico, um projetor de filme de 16 mm. Esse objeto, que se encontra entre o espectador e as imagens suspensas, atua como uma cesura, ou uma cisão sobre o legado trágico de Blanqui, que nos condenava a um processo de retorno constante, uma espécie de eterno retorno que Friedrich Nietzsche viria a postular. A luz projetada é uma imagem dinâmica que cria outro ciclo e um espaço aberto para a humanidade da dúvida e da utopia, em confronto com a densidade das paisagens. O som acentua essa circularidade intemporal que transmuta o reconhecível e o inominável numa unidade paisagística entre o universo sideral e a memória terrena das enseadas da ilha onde se situa o Château du Taureau.


Contudo, a sonoridade marítima, e grave é marcada por uma frase, a única intersecção da linguagem falada que ocorre em toda a instalação. Essa frase é a primeira estrofe de um poema de Arthur Rimbaud, intitulado «L’Éternité», e que foi publicado em 1872, ano em que Blanqui terá apresentado, como último recurso à sua condenação pelo tribunal de Versalhes, o livro escrito na prisão do forte. Essa estrofe está também presente num filme de Jean Luc-Godard intitulado Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965), e é dita num diálogo entre os dois atores principais, Anna Karina e Jean-Paul Belmondo: «Elle est retrouvée.»


É esta estrofe, quase inaudível, que reúne em cada imagem essa circularidade, porventura trágica, mas imensa como um cosmo que se reinventa numa ars combinatoria, como um intervalo sobre a inexorabilidade do tempo que nos é constitutiva. Nesta obra de AnaMary Bilbao, reside a consciência da finitude que não fica refém do fragmento ou da totalidade enquanto representações, mas da sua ultrapassagem. «Elle est retrouvée.»

 

João Silvério, Maio 2019

 


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